Sunday, June 27, 2010

O Fascismo Diário

[Acerca do Clima Fascista] O Fascismo Diário

Homero Fraga Bandeira de Melo[1]

“Boas casas, boas roupas, bom padrão de vida, boas leis e liberdade são melhores que penúria, anarquia e escravidão. Os que estão infelizes em Londres podem ir para as Órcadas; lá viverão como se vivia em Londres no tempo de César. Comerão pão de cevada, cortarão a garganta um ao outro por um pedaço de peixe seco e uma cabana de palha. E quem dá esse conselho deveria também dar o exemplo.”

Voltaire, François Marie Arouet de, 1674-1788. O ABC: Sétima Conversação: A Europa Moderna é Melhor do que a Antiga.

Estávamos, como quase sempre, (e após deixarmos a “mesa”), no Rio 40 Graus, a confabular, “encerrando o expediente filosófico” do dia.

Éramos três e chegando o quarto cidadão, este, (após tragada profunda em um Dunhill Carlton), e, também após sorver meia taça do honesto vinho do lugar, desabafou: “não se pode fumar mais em lugar algum desta cidade! [vociferou] Hoje, na barca, retirei-me para fumar distante dos outros cidadãos, e, mesmo assim, fui vítima de olhares odiosos. E quase a terminar o devotado ofício da ingestão necessária de nicotina, que torna meu espírito cheio de deuses, aproximo-me do guichê onde comprei minha passagem de encontro ao Rio de Janeiro, à labuta, e, posteriormente, à universidade, onde venho a ter com os meus, quando uma senhora comenta acerca de mim com um senhor em tom de profunda reprovação: “ele é fumante”. Atordoei-me; pois, afinal, que fiz àquela criatura? O homem com quem ela comentara isso já, em mente, investia-se do uniforme dos Carabinieri. Estava pronto para avançar contra um inimigo do Estado, contra um ente, que graças a Vitório Emanuelle III já não era mais um nacional da Itália, e, portanto, destituído de cidadania, a mim se poderia fazer o que se aprazia. E assim, tenso, aviltado, humilhado e agredido sem razão alguma; pois que se fosse, realmente, proibido fumar seria da forma como é na França, atualmente o país mais nazista de todo o mundo – saudoso do governo de Vichy – que tira a beleza de seus cafés, onde nenhuma filosofia é mais possível; pois que imaginemos Sartre sem seus Gauloises e a terna imagem de Deleuze sem a fumaça, inocente, ao fundo? Dirigi-me ao balcão de passagens perguntando: por que?”.

A pergunta colocada àquela mesa, naquele dia da semana onde as pessoas laborais vão direto para suas casas descansar e cuidar de seus afazeres, pois que acreditam que podem dominar a Chronos, (deus impiedoso para com àqueles que nele acreditam), reverberava. Afinal, é possível a filosofia em um ambiente sóbrio, equilibrado, cheio de leis e regulamentos?

E é por isso que a filosofia não é possível na nazi-fascista academia! Homens bem vestidos, mulheres idem, cheios de si mesmos, certos de seu saber! Pessoas de conduta aparentemente reta, a citar John Rawls, Alasdair Chalmers MacIntyre, Immanuel Kant, Hans Kelsen! Defensores do Estado de Direito! Pessoas que optaram por crer em um Estado em que não se pode e nem se deve fumar (se bem que dentre esses senhores um padre jesuíta deles destoa, fumando alegremente seu Hollywood e também vociferando contra o estado de coisas – que diz creditar aos comunistas, mas isto é outra estória – ou seria história?); porém que se locupletam com verdadeira felicidade quando lhes aparece uma oportunidade delituosa. O erário, então, é o principal freguês destas pessoas tão retas, tão éticas e que viajam quase todo o ano à Alemanha com a finalidade de serem vítimas do ódio daqueles que se dizem verdadeiramente arianos! Lá tem suas carteiras roubadas e se o dinheiro do CNPq atrasa, a primeira coisa que se lhes corta é a calefação... Voltam ao Brasil saudosos, celebrando um possível IV Reich, sonhando com o fim do turno da noite da faculdade... A grande parte deles, nem de longe, corresponde a tipologia ariana. Esquecem que se subir o IV Reich aqui no Brasil, nem eles, nem 70% da população brasileira, se se pensar em termos das Leis de Nuremberg ou dos Protocolos de Wannsee, ficarão para contar história! Talvez os sulistas, por serem descendentes, restem para re-colonizar esta Terra Brasilis!

O antigo Rei dos Sucos, hoje MateMix, também aderiu a imagética nazi-fascista (não esqueçamos Hitler era vegetariano e anti-tabagista – a favor de uma dieta saudável, da leitura de livros edificantes; essas coisas...), com cartazes com o famoso: “é proibido fumar, portar, acender...”. Curiosamente, o cartaz mais uma vez resta no esquecimento. De dia, os homens do direito, da lei, do Estado, que citam Hans Kelsen, Immanuel Kant, John Austin, não permitem que se descumpra a lei. De noite necessário é descumprir a “lei” (se é que ela se instaura em uma atmosfera onde só há possíveis, paisagens, atravessamentos voltaicos gigantescos) e nosso café vai até a mesa, bem como os pratos – e os indivíduos defensores da moral (?), da ética (?), do Estado, da probidade administrativa (?), descansam em seu ódio, pois o MateMix sabe bem o velho mandamento dos restaurantes: expulsar os fumantes é decretar falência, pois que são eles que mais tempo passam nas mesas e são os que mais consomem. Seu dinheiro é sempre bem-vindo. Por isso, o restaurante que fica perto do Rio 40 Graus, ao lado da Igreja, fica vazio e o nosso novo ponto na noite universitária se transversalisa apinhado de pessoas cheias de vida, pulsão e vontade de observar a “linha do horizonte” (Marlboro) onde não há limites (“No Limits” – Hollywood, entre 1997 e 1998 – chavão criado para os últimos comerciais que o nazi-fascismo deixou ir ao ar).

A grande questão na proibição do fumo, fora os temas elencados nesta mais acima, é simples (e ninguém quer muito prestar atenção nisso): trata-se de coibir a liberdade de expressão. Na medida em que o Estado inicia um processo deste (o Brasil tem 22 milhões de fumantes, que pagam 74% de imposto em cada Box de cigarro), ele elege um grupo, que está em minoria, e que não pode apresentar velocidade e/ou potência de defesa suficientes, e aponta a este como o “inimigo número um da nação”. Mas, não é só esse o espelho do fascismo diário. Hoje vivemos mais (fumantes e não-fumantes) devido ao avanço da medicina. Porém, não temos nenhum direito de envelhecermos. A velhice é vista como doença. Os próprios velhos a renegam! Cena um: Rua 24 de maio, uma senhora faz sinal a um ônibus, muitas pessoas no ponto. O ônibus não para. Trata-se de um idoso. Idosos podem esperar... Cena dois: mesmo lugar, outro dia, outro horário... A mesma senhora. Faz sinal. O ônibus para distante. Era o suficiente para que um ágil jovem arremessasse a guimba de seu cigarro ao longe, corresse e entrasse no coletivo. A senhora tentou, porém “ficou na pista”... Isso, também, é fascismo no sentido em que todos, independente de credo, raça, cor ou qualquer outro item, contanto que estejam na posse de seu direito de cidadãos, tem direito de ir e vir, conforme lhes convier.

O fascismo começa a tomar vulto em nossa nação, na medida em que o povo, de forma geral, tem, (cada vez mais), menos acesso a informação de qualidade, a cultura e a educação formal. Desde o início do milênio notamos queda absurda na qualidade do aluno do curso. Nesse período ministrei aulas a alunos de outro curso. Lembro como se fosse hoje: os sujeitos desconheciam Galileu, Copérnico, Kepler e Newton! Vinham do antigo Segundo Grau. Não sabiam. Seriam, daqui a cinco anos, “cientistas”! E são esses que passam para o amestrado, depois para o adoutorado, tornam-se professores, compram uma pasta marrom e vestem roupa social. Depois “se arruma” um “pós-doc” em algo nebuloso como “derivação quinta da hipótese sétima presente na organicidade do discurso real e verdadeiro em...”. Mas, se você estudar o que interessa para você, para a vida, para a composição dos afectos, festejar a vibração que é viver cada dia de forma diferente, gostar de assistir o nascer e o por do Sol, cultivar amigos e interlocutores, se esmerar por estar sempre aprendendo algo novo lendo de tudo, se você tentar burlar o sistema, se você não aceitar as regras, então... E eles sabem quem é você! Você não se esconderá deles. É o velho truque do nome com asterístico, é o famoso telefonema das três da manhã.

É fácil saber quem está vivo e quem não está; pois os vivos tem a face corada e seu corpo pesa mais. Eles presentificam uma forma substancial onde alma e corpo se confundem aparentando ser uma coisa só – como o velho Leibniz nos diz no Discurso de Metafísica.

Se em uma universidade pública o nível das pessoas é tão baixo, ao andar na rua, conversar com elementos do povo e tentar, de alguma forma, entender o movimento social, nos deparamos com os fascismos de cada dia. Porém, essa falta de educação formal não é desculpa para as atitudes fascistas. As pessoas que as tomam sabem e tem consciência plena delas. Elas não são dignas de perdão, nem de ódio, nem de indiferença. É a velha estória dos dois monges Zen e a mesma do Zaratustra de Nietzsche: “não devemos carregar cadáveres nas costas” (estou citando de memória e parafraseando – sei que há cá pessoas versadas em Nietzsche, porém, não vou parar de escrever agora para ir a estante ver na Werke tal ou qual se isto é assim mesmo – definitivamente, não sou homem de acordos).

Por tudo isso sei que você leitor já está cansado de minhas circularidades e tenho apenas mais algo a dizer: “cuidemos de nosso jardim” e que estes que insatisfeitos com a resistência que a Filosofia está a proporcionar deixem a ágora virtual. E deixarão. Isso é apenas questão de tempo, pois uma nova força está nascendo de dentro dos bueiros, nas ruelas escuras, e empunhando espadas de puro sentido, assaltarão. E que estes que hoje nos oprimem, assistam e ouçam o barulho opressor do silêncio, tal qual estrondo a quebrar todas as barreiras. A Filosofia não veio para costurar alianças e assinar contratos, e, só podemos vencer em sociedade, angariar algum respeito dela, se nos apresentarmos como um soldado que não deseja viver; pois, como diz o velho ditado chinês: àqueles que desejam morrer, viverão; àqueles que desejam viver, morrerão.



[1] Homero Fraga Bandeira de Melo - Professor de Filosofia e Bacharel pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ


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